A assombrosa e fria civilidade holandesa

Publicado em 14 de outubro de 2007 e atualizado em 5 de março de 2024

Referente a setembro de 1998

O primeiro fim de semana do mês foi diferente. Meu chefe inglês me levou para a casa de seus pais na Inglaterra, que fica na cidade de Canterbury.

Canterbury é uma encantadora cidade histórica, um dos principais centros da cultura, religião e educação inglesas. Fica a 100 km de Londres e está situada no famoso Jardim da Inglaterra, na parte normalmente mais ensolarada do país — se bem que o sol não apareceu muito enquanto estive lá.

Casa dos pais de meu chefe inglês, chamada The Oaks
Casa dos pais de meu chefe inglês, chamada The Oaks

A casa deles, chamada The Oaks, localiza-se numa elegantíssima vila campestre chamada Westbere, um local de belas e repousantes paisagens como só a Europa proporciona.

Fui também visitar a Catedral de Canterbury e estou até agora assombrado com a monumental riqueza histórica e cultural daquele lugar, além da própria beleza intrínseca da obra erguida há mais de mil anos. Visitar a catedral é como fazer uma viagem pela história. Reis e imperadores dos quais só sabemos pelos livros estão sepultados lá, como o rei Henrique IV e sua esposa, Joana de Navarro, além de vários outros importantes personagens históricos.

Mas não foi só isso o que me chamou a atenção naqueles dois dias em que fiquei em Canterbury. Foi também o quão bem e à vontade me senti naquele lugar, em meio àquelas pessoas. Tão bem e tão à vontade como em duas semanas não me senti aqui na Holanda. É notável a diferença de cultura e comportamento entre holandeses e ingleses. Os holandeses de modo geral são fechados e às vezes antipáticos, como minhas vizinhas do andar de cima, e não têm muita paciência com estrangeiros. Já os ingleses me davam bom dia quando eu passava na rua e todos aos quais recorri para uma informação ou pedido de ajuda mostraram-se muito solícitos e gentis.

Por isso, senti uma leve tristeza por ter que vir embora. Gostei tanto de Canterbury que queria ficar lá. Meu chefe disse que eu poderia ter ficado, se quisesse, pois posso trabalhar online lá.

Mas os fatores dinheiro e segurança me preocupam. Não creio que seja o momento de ficar gastando dinheiro com viagens ou de me expor a riscos desnecessários. Acho que é o momento de poupar o máximo possível e de me resguardar para o futuro próximo. Se decidir ir a algum lugar sozinho, esse lugar será Amsterdã, que é aqui perto. Ainda não estou totalmente seguro de como serão as coisas a médio prazo e não gosto de estar despreparado.

Outra idéia que me parece tentadora, mas à qual estou resistindo, é a de morar aqui. Por mais que seja interessante, aqui não é o meu lugar. Na Inglaterra, talvez. Toda a minha vida está lá no Brasil. Além do mais, meu idioma nativo é o português, a empresa pretende se instalar no Brasil no próximo ano e não vou querer perder essa festa.

Tenho reclamado muito da falta de amabilidade dos holandeses, especialmente com estrangeiros. Eles não chegam a ser rudes, apenas frios. Indiferença é a palavra que melhor os define.

Isso, contudo, não lhes tira o mérito de serem um povo socialmente evoluído e organizado. Tenho visto tais características nas ruas, andando entre eles. Quem chega em Utrecht vindo de um lugar atrasado, como eu, até estranha tamanha civilidade. Nas ruas, por exemplo, há sinalização para motoristas, para pedestres e até para ciclistas. As faixas exclusivas para ciclistas têm semáforos próprios e mão de direção. Se a polícia flagrar um ciclista andando na contramão, por exemplo, certamente será multado.

As ruas praticamente não têm meio-fio. Nas que têm, esse meio-fio é bem baixo. Isso tem uma razão bem simples: facilitar a circulação de cadeirantes. Geralmente o que delimita a área reservada para carros, bicicletas e pedestres é a pintura no chão ou a cor do pavimento. As faixas para ciclistas quase sempre são pintadas de vermelho ou feitas de um tipo de lajota de coloração diferente. Aqui não existem paralelepípedos e, quando a rua não é asfaltada, é calçada com lajotas de cimento, os que as torna bem lisas para carros, bicicletas, patinadores e cadeirantes. Ruas de terra? Coisa de Terceiro Mundo!

A civilidade a que me referi não se aplica só aos que enxergam, mas também aos que não enxergam. Vi hoje uma cena que só tinha visto antes na TV: uma moça cega guiada por um cão. Eu estava em minha bicicleta, parado no semáforo que estava vermelho para ciclistas e pedestres, quando a moça e o cão pararam ao meu lado. Ela tirou algo do bolso e, tateando, buscou a boca do animal. Nesse exato momento, por coincidência, o semáforo de pedestres abriu e eles seguiram. Foi aí que entendi a razão da existência de sinal sonoro para pedestres: não é só para chamar a atenção de transeúntes distraídos, também avisar aos deficientes visuais o momento de atravessar.

Esse fato por si só já me deixou boquiaberto, ou seja, a que grau chegou a civilidade deste povo: a existência de sinalização auditiva para orientar cegos. Aliada a esse fato, porém, a maior surpresa veio do cão: foi ele que puxou a moça quando o sinal abriu! O cão simplesmente havia sido treinado não só para conhecer o caminho, como também para prestar atenção ao sinal sonoro. A julgar por isso, deduzi que, além de cega, a moça deveria também ser surda. O cão era seus olhos e ouvidos.

Segurança também não é problema. Privada de visão e audição e guiada por seu fiel cão-guia, aquela moça provavelmente se sentia tão segura nas ruas quanto eu. É difícil ver um único policial. As casas não têm grade nas janelas nem muros. Os carros não têm alarme e os que têm, não usam. Vi carros estacionados com a chave no contato. Pode-se sair de casa a qualquer hora do dia ou da noite seguro de que nada vai acontecer.

Neste mês começou a esfriar. Não se vê mais o sol, só nuvens, vento, chuva e frio. Já tinha ouvido falar que a Holanda é um lugar deprimente no inverno e agora tenho as primeiras amostras disso. Continua belíssimo, sem dúvida, mas deprimente. Em dias como esses, não me resta nada a fazer a não ser trabalhar, comer e dormir. Feliz de mim que posso trabalhar em casa e fazer meus próprios horários.

Essa “felicidade”, contudo, tem um preço: a solidão. Não vejo gente, não interajo com as pessoas, não faço amizades nem conheço ninguém. Houve momentos em que me senti muito só. Sentia falta de meus pais, do meu canto, das minhas coisas, da minha cama, da minha TV, do meu som, do meu quarto, da minha bagunça, até do carro velho que me levava para onde eu queria ir.

Em certos momentos uma lágrima solitária descia pelo rosto. A saudade doía, apertava o coração, dava um nó na garganta, fazia-me sentir impotente, pequeno, insignificante, perdido nesta terra estranha, em meio a pessoas estranhas que falam uma língua impossível de entender.

É claro que eram só momentos. Não vivo numa caverna, posso sair quando bem entender e conhecer gente. Mas ser sociável num país estrangeiro sem falar o idioma local é complicado. Falando inglês posso ir ao supermercado, ao shopping, ao banco, ao aeroporto ou pegar um trem para Bonn, na Alemanha, como fiz semana passada, mas não posso contar piadas nem ser comunicativo e sociável, como me é habitual. Embora todo mundo aqui fale inglês, não é o idioma nativo deles, nem o meu. Por mais que não pareça, usar um segundo idioma para tentar socializar é uma barreira para ambos os lados.

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Um comentário em “A assombrosa e fria civilidade holandesa

  1. Olá, Marcelo

    Vc me fez chorar com suas palavras no fim do artigo. A solidão dói mesmo. Em fevereiro estarei indo à Holanda. Especificamente a Utrecht. Espero que nesse tempo já esteja menos frio.

    Até lá,

    Sol

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