‘Eu, o Senhor, estou obrigado quando fazeis o que eu digo’

Publicado em 26 de janeiro de 2008 e atualizado em 14 de fevereiro de 2024

Uma notícia que li esta semana na Internet a respeito do infortúnio de um irmão da Igreja, publicada pelo jornal The New York Times, me deixou bastante consternado. Neste artigo vou identificá-lo apenas como irmão Smith.

Segundo o artigo do NYT, esse irmão de Salt Lake City, Utah, onde situa-se a sede da Igreja, definiu-se como alguém que, na adolescência, “era solitário, um nerd, participante do clube de matemática e xadrez”. Até que, em um evento vocacional do segundo grau, ele se deixou atrair pelo estande dos fuzileiros navais. Foi quando decidiu que queria se tornar fuzileiro naval dos EUA. Alistou-se como reservista no início do ano 2000.

Então vieram os atentados de 11 de setembro de 2001 e a guerra no Iraque. O irmão Smith recebeu sua ordem de convocação em 7 de janeiro de 2002. Tirou licença de seu emprego na rede de lojas de varejo Wal-Mart e se transferiu ao Camp Pendleton, perto de San Diego, Califórnia.

A profundidade de suas experiências durante a guerra no Iraque provocou nele severo abalo psicológico. Voltou para casa transformado em fumante e usuário de álcool, além de ter tido sua fé em Deus seriamente abalada.

Algum tempo depois de voltar do Iraque, o irmão Smith foi enviado para fazer um curso que o prepararia como instrutor de tiro. Mas foi no início do curso que seus superiores perceberam que Smith não era mais o mesmo. Observando alvos pela mira telescópica, ele começou a tremer, porque o que via pela mira não eram objetos inanimados, mas imagens claras e alucinatórias do Iraque, “os carros avançando contra nós, o caos, a poeira, as mulheres e crianças, os corpos que deixamos para trás”, afirmou. A cada vez que premia o gatilho, conta Smith, ele chorava, até que, em suas palavras, “perdi o controle na pista de tiro, algo que um fuzileiro naval não faz”.

Smith foi dispensado do serviço militar, classificado pela corporação como vítima de stress pós-traumático e encaminhado a hospitais de veteranos em busca de assistência.

Quando a desintegração psicológica de Smith chegou a seu momento mais crítico, em março de 2006, ele matou Nicole Marie Speirs, 22 anos, mãe de seus filhos gêmeos, afogando-a em uma banheira sem motivo ou provocação aparentes.

Smith confessou o crime em um hospital de veteranos de guerra, foi preso e processado.

Segundo a reportagem, ninguém acredita que o assassinato da moça pelo próprio marido perturbado seja justificável, mas muitos dos envolvidos no problema imaginam se a vida dela não poderia ter sido poupada se o trauma de combate do fuzileiro naval tivesse sido tratado de forma mais eficaz pela corporação militar. Os pais da jovem não se envolvem nesse tipo de especulação: consideram que sua filha foi vítima de um incidente fatal de violência doméstica, não que seja vítima indireta da guerra no Iraque. “Sinto que muita gente usa a guerra como forma de se opor à guerra”, disse John Speirs, pai de Nicole. “É como se dissessem que o presidente Bush matou Nicole. Bem, quem matou Nicole foi Walter. A guerra talvez o tenha influenciado, mas não foi motivo ou é desculpa para o que fez”.

Em uma longa entrevista, Smith parecia quase concordar: “Não posso dizer com completa honestidade que o estresse pós-traumático causou minhas ações”, declarou ele na cadeia. “Não quero usar essa desculpa. Eu sentiria como se estivesse tentando fugir de algo por que sou responsável. Mas tenho certeza de que, antes de ir ao Iraque, eu de jeito nenhum tiraria a vida de alguém”.

Quando li a notícia, fiquei sem saber o que pensar. É verdade que o Senhor permite que enfrentemos provações, pois através delas Ele nos ensina preciosas lições na escola da vida eterna. Mas será que chega a tanto? Que tipo de lição pode aprender alguém submetido a uma tortura psicológica tal que abala até sua fé no Professor e o leva a uma desintegração psicológica capaz de fazer com que mate a mãe de seus filhos?

Caçando uma explicação plausível para o carma que o irmão Smith carregará consigo por toda a vida e além, encontrei em um detalhe da reportagem algo que pode ser a chave para explicar o mistério. A reportagem dizia que, naquele evento vocacional em que se deixou seduzir pela vida de fuzileiro naval, o irmão Smith viu a oportunidade perfeita para escapar de seu destino. “Se você é criado como mórmon, sabe bem como sua vida vai ser”, disse ele. “Aos 19 anos, a maior parte dos jovens se torna missionários”. Em vez disso, ele optou por ser soldado.

Então pensei: será que, se ele tivesse atendido o mandamento do Senhor de servir em missão, teria passado e estaria passando por isso? Ele mesmo parece ter respondido a pergunta ao dizer: “Tenho certeza de que, antes de ir ao Iraque, eu de jeito nenhum tiraria a vida de alguém”.

Não estou fazendo nenhum juízo de valor. O Senhor nos deu o mandamento de não julgar e não quero transgredi-lo pensando algo como “Tá vendo? Se tivesse ido para a missão, nada disso teria acontecido”. Não conheço as circunstâncias de sua vida, não sei como foi educado, nem qual foi a postura de seus pais quando decidiu ser soldado em vez de missionário, nem se era membro firme da Igreja, nem uma série de outras coisas. O que sei é que, como diz a reportagem, a queda do irmão Smith ao homicídio e a um ânimo suicida não é representativa da situação de veteranos que voltam de guerras sofrendo de síndrome de estresse pós-traumático. Ninguém sabe se ele já portava uma predisposição a um desequilíbrio psicológico que teve a guerra como gatilho, caso em que esse gatilho poderia ter sido puxado através de qualquer outra situação extrema, como uma briga conjugal mais séria ou um acidente de trânsito, por exemplo. Até mesmo a própria missão de tempo integral pode oferecer situações bem estressantes — eu mesmo passei por isso.

Eu poderia especular o dia todo sobre isso, mas não o farei. O que prefiro fazer é reiterar o caráter extremamente sagrado do serviço missionário e do mandamento dado pelo Senhor a todo rapaz que atinge 18 anos de idade para servir como soldado em uma guerra espiritual que salva vidas em vez de tirá-las. Esse foi o motivo pelo qual, quando completei 18 anos, me alistei na Marinha, uma força militar que eu sabia que estava com excesso de contingente, o que me permitiria ser dispensado do serviço militar obrigatório e me deixaria livre para continuar minha preparação para embarcar no serviço de Deus em uma missão de tempo integral aos 19 anos. Testifico a todos quantos vierem a ler estas palavras que foi uma das decisões mais acertadas de minha vida, só não sendo mais acertada que a de me tornar membro da Igreja de Jesus Cristo.

Se posso aqui dar um conselho aos rapazes SUD do mundo, não se deixem seduzir por qualquer coisa que o mundo possa oferecer em troca do serviço missionário. Assim como aconteceu comigo, o Senhor há de compensá-los muitas vezes mais por qualquer coisa de que tenham que abrir mão para lutar na guerra espiritual do estabelecimento de Sião. Falo por experiência própria.

Na Conferência Geral de abril de 2006, o Élder Richard G. Scott, do Quórum dos Doze Apóstolos, disse (destaque meu):

Se você é rapaz e está-se perguntando se deve cumprir uma missão de tempo integral, não tome essa decisão vital com base somente em sua própria sabedoria. Procure o conselho de seus pais, do bispo ou presidente de estaca. Quando orar, peça ao Senhor que lhe revele a Sua vontade. Sei que a missão lhe proporcionará bênçãos extraordinárias agora e ao longo de toda sua vida. Exorto-o, não a orar perguntando se deve ir, mas a orar pedindo ao Senhor que o oriente em tudo o que for preciso para tornar-se um missionário de tempo integral digno e capaz. Você nunca se arrependerá de servir como missionário, mas é provável que se arrependa caso decida não fazê-lo.

Compadeço-me da sina do irmão Smith. Oro para que seja beneficiário do poder curador da Expiação de Cristo e que Ele tenha misericórdia dele no grande dia do Julgamento por causa do crime que cometeu. Espero não ter que me compadecer da dor de mais ninguém por ter optado por não servir ao Senhor em missão, abrindo mão da proteção das legiões de anjos a serviço dos que servem ao Senhor de todo seu coração, poder, mente e força. Nunca percamos de vista o fato de que, embora sejamos livres para fazer nossas escolhas, não somos livres para escolher as consequências dessas escolhas. Então, que escolhamos sabiamente. E sempre é escolha sábia obedecer aos mandamentos do Senhor. Quando fazemos o que Deus manda, estamos sempre certos.

Eu, o Senhor, estou obrigado quando fazeis o que eu digo; mas quando não o fazeis, não tendes promessa alguma. (D&C 82:10)

Leitura adicional recomendada: Dr. Rey: ‘não cometa o erro que cometi’

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6 comentários em “‘Eu, o Senhor, estou obrigado quando fazeis o que eu digo’

  1. Muito forte esta história, mas também muito realista, sem duvida alguma a gente colhe o que planta e quem semeia vento colhe tempestade sempre!

    Eu agradeço seus conselhos e apoios sempre e espero que voce possa ter a oportunidade de conhecer o meu filho ai e dar a ele também esta força ok, valeu!

  2. Caro Marcelo,

    Que grande artigo, obrigado por publlicar esta matéria, sem dúvida irá mudar o curso da vida de muitos jovens.

    Grande Abraço,
    Hermes Cordeiro

  3. Prezado Marcelo

    Não pode imaginar o quanto este relato irá abençoar a vida de muitos jovens sob minha responsabilidade.
    Um forte abraço.

    Fraternalmente

    Eugenio Rocha

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